Naquele domingo até o futebol mudou de horário, o almoço não... Aqui em
casa apesar da tristeza no céu e no ar, a mesma rotina, com todas as movimentações típicas desse dia. O que acontecia no mundo,
lá fora, não queria saber! Ali estava
minha mãe na cozinha, as crianças inventando brincadeiras, as cachorras já de
banho tomado, eu na faxina da casa, minha irmã na casa dela com meu cunhado
planejando a semana. Mas, diferente dos
outros domingos, a TV de minha sala permanecia desligada.
Na rua tudo igual. O culto na igreja ao lado havia terminado
e na calçada estavam as senhoras e senhores com suas roupas de domingo, a
bíblia na mão, palavras do pastor na boca e os olhos a controlar a movimentação
das crianças na rua.
A única atenção para o mundo além estava no telefone. Aos céus pedia que a notícia não chegasse...
Nunca. Mas, pela conversa com a médica,
ela chegaria a qualquer momento, não passaria do próximo domingo.
Depois do almoço, finalmente tomei coragem e fui ao quarto
optar entre duas tarefas: enfrentar uma montanha de roupas que há duas semanas esperavam
pelo ferro ou enfrentar aquela janela que me levaria para o mais cinza dos
domingos? Minha razão pedia a roupa e meu coração mandava enfrentar a janela. Dei
ouvidos ao coração e enfrentei a janela do mais virtual de todos os mundos.
Imagens pipocavam sobre o mesmo assunto, uma onda de amarelo
biliar sobressaia a acentuar a cor cinza
daquele dia... Eram imagens estranhas
que me levaram a questionar se nada será como antes, amanhã... Em minha mente aquelas imagens se misturaram
com as de um passado ensanguentado, bílis negra.
Perdida nesse caleidoscópio de fatos e história, fui devolvida ao meu
quintal pelas vozes agitadas das crianças: “tia, tia, um gavião... Corre!”.
Automaticamente o celular veio a minha mão, já que a máquina fotográfica estava
distante e poderia perder a chance de fotografar um gavião aqui por perto.
Quando cheguei ao portão lá estava ele, não no ar, mas
enrolado em uma toalha nas mãos de meu
cunhado.
Pássaro tão lindo! Como nunca
tinha visto igual, assim, de perto. Olhar assustado, visivelmente machucado e
rendido ao destino. Olhei para aqueles
olhos profundos a dizer-lhe que iríamos
ajudar... Como podíamos lhe acalmar? Naquela situação quem se acalmaria?
“Estava ali, encostado no muro. Vi algo se mexendo e cheguei
perto. Ele se assustou e eu também... Ai ficou me olhando com esse olhão e eu
olhando ele, até que chamei o Lima pra pegou o passarinho”, minha mãe contando como encontrou o Falcão
Peregrino, que até aquele momento nos parecia ser um gavião. Afinal, não é todo
dia que uma ave dessas aparece aqui em casa.
Enquanto providenciavam um local para deixa-lo protegido, fui telefonar para os bombeiros, que orientaram procurar a Polícia
Ambiental.
Liguei e percebi duvidas no ar. Mais tarde soube que não é
comum as pessoas que encontram esses pássaros solicitarem auxilio, geralmente se
calam e os mantêm prisioneiros. A princípio pensaram ser brincadeira, só depois de minha insistência acreditaram.
Enquanto o resgate não chegava, ficou em uma caixa de
papelão coberta por uma toalha, bem quietinho. Apesar da curiosidade, fizemos um trato de não
incomodá-lo e deixar a área silenciosa para que pudesse descansar da fuga e
recobrar energia.
De minha janela, olhava a caixa de papelão e a movimentação
ao redor dela; crianças aflitas para levantar a toalha e dar uma espiadinha, água, comida, bolacha, cenoura, tomate, chocolate ... Da janela virtual, nem
mais via a onda amarela biliar que crescia em número e ódio, sem proposta, sem
ternura, sem afeto por aquilo que diziam defender. Como a querer cortar as asas de um País que
dava seus primeiros voos em liberdade. Daquela janela só buscava identificar
quem era o visitante e nos comentários da
sua foto, que publiquei no facebook, descobri tratar-se de um Falcão e
não Gavião. Será? Com essa possibilidade rastreei e encontrei imagens muito semelhantes a dele... Sem dúvida
era um Falcão Peregrino!!! O mais veloz
de todos os pássaros conhecido, ali, em uma caixa de papelão coberta por uma
toalha.
Nada mais triste do que a falta de liberdade e aquela caixa lembrava
que muitas prisões não são feitas de grades. Um Falcão Peregrino, com voo impedido; um povo oprimido pela injustiça e miséria, cuja plenitude da vida é
impedida; uma pessoa presa a uma cama, cujo corpo não mais quer responder a
vida, são alguns dos exemplos.
O telefone tocou e o coração gelou. Do quintal mais dois
olhares aflitos em minha direção... Não. Não era a ligação ruim e sim a boa. A
Polícia Ambiental informando que ia demorar um pouco, pois estavam atendendo outras ocorrências.
Assim, apesar do trato, não resistimos e revezamos a visita ao nosso
hospede. Levantar a ponta da toalha era como abrir a janela para o mais real dos
mundos. Através daqueles olhos solares me acalentei. Não havia a agitação inicial, parecia mais
tranquilo ou resignado, não sei. Apenas me olhava fixamente, sem medo e desejei o mais lindo dos voos para aquele
ser e para o Jr, o mesmo voo de liberdade
que sempre desejei para meu povo.
Eram 23h39 quando chegaram para resgatar nosso Falcão
Peregrino, agora chamado de Falquito. Ainda na caixa os primeiros olhares de
quem conhecia o assunto, nos deu o alívio em saber que conseguiu fugir antes
da asa ser mutilada. Seria levado ou para o Orquidário ou Parque Anilinas em
Cubatão e quem sabe em breve ganharia a liberdade do voo.
Já apegados ao Falquito o vimos sair pelo portão, havia
tristeza pela despedida e alegria pela certeza do dever cumprido. Rápida
passagem, algumas horas e muitas lições.
Hoje, 29 de março de 2015, quinze dias após aquele domingo, o
céu continua cinza e chora. Na
quarta-feira daquela semana, soube que o Falcão estava
livre, voando pelos lados da Rio-Santos e pouco antes da meia-noite, meu cunhado, irmão de
coração, o Jr, aos 49 anos se liberou de
um corpo cujo fígado adoeceu. Uma hepatite C, levou a um câncer, deixando sua passagem entre nós bem mais breve
do que poderia ter sido. Porém, extremamente amorosa e cheia de dignidade. Vai ver, ele
pegou carona nas asas do Falcão e foi tocar o seu baixo em uma festa que o
esperava lá no céu.
Daquele domingo, ainda resta a bílis amarela a permear profundamente
os sentimentos de uma camada de nosso povo. Que ele se cure!!!