Depois de uma conversa com uma amiga, lembrei desse
pequeno escrito e resolvi tirá-lo da gaveta. Fazia parte de uma
série de continhos que comecei a chamar de Linhas. Essas são as Paralelas...
Outras estão enroladas no novelo ou guardadas na gaveta. rs.
Paralelas
1
Um som absurdo rasgou o ar. Agudo demais para os ouvidos
humanos perceberem. A atmosfera depois daquela vibração elevou o
tom do pôr do sol e os raios foram cortados por finíssimas faixas
horizontais avermelhadas.
O cachorro na varanda latiu como um desesperado para o
nada. Depois virou-se perguntando com os olhos o que havia
acontecido. Ela também não sabia, apenas sentiu um calafrio muito
forte e a sensação de um movimento intenso em outro nível da
consciência dela e da Terra. Uma força que não conhecia chegava
veloz.
Fechou os olhos. Viu a imagem de uma taça do tamanho do
mundo com água muito turva, até a boca. De um ponto de luz, acima
da taça, caia uma gota clara produzindo intensas ondas que
escorregavam para fora como fortes cachoeiras .
- Pobre Taça! Pensou.
Uma corrente elétrica passou rapidamente por sua
coluna. Aquele sentimento de pena abriu portas para uma dor
dominá-la. Lágrimas escorreram juntando-se coma as da taça.
A dor do planeta, a dor sem sentido, sem juízo invadiu-a até as
entranhas e apertou seu coração como se fossem mãos a espremê-lo.
“Nada te Turbe! Nada Te espante. Tudo passa”. Focalizou todo o
seu ser nas palavras de Tereza e aos poucos abriu os olhos lavados e
distantes.
Era noite e as estrelas em seus lugares a enchiam de luz
pulsante. O cão olhava para ela com aquele ar de quem ainda espera
uma resposta.
- Tudo bem. É só muito trabalho no silêncio dos
mundos.
2
O carro parece lhe perguntar se terá coragem de jogá-lo
no meio daquela confusão. Tinha outro jeito? Após um dia muito duro
era hora de ir para casa, mesmo com mais uma batalha à enfrentar: o
trânsito. Depois a recompensa... a sua banheira e cama... não...
antes comeria algo assistindo o jornal. A última obrigação do dia.
Olhou para o retrovisor, girou a chave e mais um
barulho de motor ressoou no ar. Têm dias nos quais as buzinas e
motores parecem mais ferozes, entram com tanta força ouvido a dentro
que ocupam o lugar dos pensamentos. Os dela já embaralhados se
rebelaram naquele momento e giraram feito um tornado em sua cabeça.
Sentiu uma tontura nauseante. Tentou puxar o ar, porém,
um peso maior a invadiu. Tudo rodava com sua mente... O
mundo lá fora. Fechou os olhos. Viu-se em uma taça do tamanho do
mundo, algo caia dentro dela provocando ondas enormes querendo
levá-la embora.
- Estou mal. Pensou.
Sentiu um calafrio por todo o corpo. Sua mente mesmo naquele
turbilhão continuou dando-lhe certezas, desta vez que finalmente o stress chegava ao
limite.
Conseguiu respirar e concentrou sua atenção na
banheira espumante e quente a sua espera. Depois de uma boa noite
de sono ficaria nova.
- Juro que amanhã marco uma consulta.
3
O sol logo iria embora. Hora de se arrumar para o
encontro de hoje. No espelho o céu aparecia alaranjado deixando o
seu corpo com um reflexo dourado. Tentou pensar em uma roupa, mas
aquelas malditas gralhas a deixava irritada demais para
decidir qualquer coisa. Olhando com atenção o rosto viu que nem a
tarde de sono havia eliminado aquela olheira terrível. A maquiagem
daria um jeito. De repente lembrou do que a está incomodando,
colocou a mão na barriga e sentiu enjoo.
O espelho não denunciava a gravidez, mas aquele som que
vinha de fora ecoava em seu ventre. Olhou fixamente a sua imagem e
foi tomada pelo horror de ver seu corpo se avolumando, suas pernas
inchadas, sua vida invadida. Sua face levada pela alucinação
foi lentamente tornando-se flácida e velha.
Paralisada, fechou os olhos e viu-se afogando dentro de um mar
violento, turvo e imundo.
- Preciso sair daqui. Gritou.
Não conseguiu se movimentar. Vomitou. Os olhos
continuaram fechados para evitar que aquele cheiro azedo se
misturasse a imagem do espelho. Tentou pensar que poderia ser alarme
falso, caso contrário teria que dar um jeito. Sua vida,
seus sonhos, dependia daquele corpo.
-Não. Mil vezes não.
Abriu os olhos no quarto estava escuro.
-Não. Mil vezes não.
Abriu os olhos no quarto estava escuro.
- Talvez seja melhor ficar em casa essa noite. Amanhã
resolvo isso.
4
Um som ensurdecedor ecoou por toda a casa. Serviço
atrasado, o jeito era fazer tudo ao mesmo tempo. A máquina de lavar
com defeito sambava na área de serviço. Na batedeira preparava a
massa de um bolo e dava graças aos céus por sua filha passar o
aspirador na casa, mesmo que para isso tivesse que aguentar aquele
som no último volume. Nem conseguia ouvir a tv ao seu lado!
Naquele horário compensava ficar na cozinha, o único
cômodo onde podia ver por uma pequena janela o sol vermelho prestes
sumir. Um espetáculo! Momento de permitir soltar a mente, lembrar de
poesias, histórias que havia lido no tempo dos sonhos antigos,
quando desejou casar, ter filhos, casa decorada e equipada como a
que tem hoje. Lembrar deles lhe parecia melhor do que vivê-los. As
vezes achava que tinha sonhado tão errado que havia desaprendido a
sonhar. Devia ser feliz, conseguiu seu desejo.
Sentiu vontade de chorar essa felicidade. Lágrimas
escorreram direto para a massa que girava abaixo de seu rosto, enquanto a massa sonora misturava-se aos seus soluços.
Sentiu o coração pulsar tão forte e acelerado que
pensou fosse pular para fora e encontrar aquele sol vermelho por
inteiro. Fechou os olhos e tudo o que viu foi uma taça do tamanho
do mundo, seca.
Respirou fundo, pensou no marido, filhos, futuros
filhos de seus filhos e no jantar. Foi abrindo os olhos na velocidade
proporcional em que diminuía a velocidade da batedeira... Até
desligá-la. Tudo ficou quieto e escuro.
- Um bolo de lágrimas, será que vai encruar?
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