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sábado, 27 de outubro de 2012

Dos meus pequenos contos - Linhas: As Paralelas

 
Depois de uma conversa com uma amiga, lembrei desse pequeno escrito e resolvi tirá-lo da gaveta. Fazia parte de uma série de continhos que comecei a chamar de Linhas. Essas são as Paralelas... Outras estão enroladas no novelo ou guardadas na gaveta. rs.

Paralelas

1 
Um som absurdo rasgou o ar. Agudo demais para os ouvidos humanos perceberem. A atmosfera depois daquela vibração elevou o tom do pôr do sol e os raios foram cortados por finíssimas faixas horizontais avermelhadas.
O cachorro na varanda latiu como um desesperado para o nada. Depois virou-se perguntando com os olhos o que havia acontecido. Ela também não sabia, apenas sentiu um calafrio muito forte e a sensação de um movimento intenso em outro nível da consciência dela e da Terra. Uma força que não conhecia chegava veloz.
Fechou os olhos. Viu a imagem de uma taça do tamanho do mundo com água muito turva, até a boca. De um ponto de luz, acima da taça, caia uma gota clara produzindo intensas ondas que escorregavam para fora como fortes cachoeiras .
- Pobre Taça! Pensou.
Uma corrente elétrica passou rapidamente por sua coluna. Aquele sentimento de pena abriu portas para uma dor dominá-la. Lágrimas escorreram juntando-se coma as da taça. A dor do planeta, a dor sem sentido, sem juízo invadiu-a até as entranhas e apertou seu coração como se fossem mãos a espremê-lo. “Nada te Turbe! Nada Te espante. Tudo passa”. Focalizou todo o seu ser nas palavras de Tereza e aos poucos abriu os olhos lavados e distantes.
Era noite e as estrelas em seus lugares a enchiam de luz pulsante. O cão olhava para ela com aquele ar de quem ainda espera uma resposta.
- Tudo bem. É só muito trabalho no silêncio dos mundos.
 
                  2

 Aquele barulho infernal do trânsito estava pior naquela tarde . Com a tempestade que despencou a rua encheu e um enorme congestionamento está formado. O céu com o tom vermelho ferrugem desses finais de tarde deixa uma impressão de sujeira no ar.
O carro parece lhe perguntar se terá coragem de jogá-lo no meio daquela confusão. Tinha outro jeito? Após um dia muito duro era hora de ir para casa, mesmo com mais uma batalha à enfrentar: o trânsito. Depois a recompensa... a sua banheira e cama... não... antes comeria algo assistindo o jornal. A última obrigação do dia.
Olhou para o retrovisor, girou a chave e mais um barulho de motor ressoou no ar. Têm dias nos quais as buzinas e motores parecem mais ferozes, entram com tanta força ouvido a dentro que ocupam o lugar dos pensamentos. Os dela já embaralhados se rebelaram naquele momento e giraram feito um tornado em sua cabeça.
Sentiu uma tontura nauseante. Tentou puxar o ar, porém, um peso maior a invadiu. Tudo rodava com sua mente... O mundo lá fora. Fechou os olhos. Viu-se em uma taça do tamanho do mundo, algo caia dentro dela provocando ondas enormes querendo levá-la embora.
- Estou mal. Pensou.
Sentiu um calafrio por todo o corpo. Sua mente mesmo naquele turbilhão continuou dando-lhe certezas, desta vez que finalmente o stress chegava ao limite.
Conseguiu respirar e concentrou sua atenção na banheira espumante e quente a sua espera. Depois de uma boa noite de sono ficaria nova.
- Juro que amanhã marco uma consulta.

3
 
Aquele barulho infernal de todos os dias na hora da saída. Parece até que abriram a porta do curral e desesperados eles correm para fora antes que alguém se arrependa e fechem o portão. Nem precisava do despertador quando dormia a tarde, acordava assustada com aquele som de gralhas que ficava em seu ouvido por um bom tempo... ressoando... ressoando.
O sol logo iria embora. Hora de se arrumar para o encontro de hoje. No espelho o céu aparecia alaranjado deixando o seu corpo com um reflexo dourado. Tentou pensar em uma roupa, mas aquelas malditas gralhas a deixava irritada demais para decidir qualquer coisa. Olhando com atenção o rosto viu que nem a tarde de sono havia eliminado aquela olheira terrível. A maquiagem daria um jeito. De repente lembrou do que a está incomodando, colocou a mão na barriga e sentiu enjoo.
O espelho não denunciava a gravidez, mas aquele som que vinha de fora ecoava em seu ventre. Olhou fixamente a sua imagem e foi tomada pelo horror de ver seu corpo se avolumando, suas pernas inchadas, sua vida invadida. Sua face levada pela alucinação foi lentamente tornando-se flácida e velha. Paralisada, fechou os olhos e viu-se afogando dentro de um mar violento, turvo e imundo.
- Preciso sair daqui. Gritou.
Não conseguiu se movimentar. Vomitou. Os olhos continuaram fechados para evitar que aquele cheiro azedo se misturasse a imagem do espelho. Tentou pensar que poderia ser alarme falso, caso contrário teria que dar um jeito. Sua vida, seus sonhos, dependia daquele corpo.
-Não. Mil vezes não.
Abriu os olhos no quarto estava escuro.
- Talvez seja melhor ficar em casa essa noite. Amanhã resolvo isso.

                                               4
Um som ensurdecedor ecoou por toda a casa. Serviço atrasado, o jeito era fazer tudo ao mesmo tempo. A máquina de lavar com defeito sambava na área de serviço. Na batedeira preparava a massa de um bolo e dava graças aos céus por sua filha passar o aspirador na casa, mesmo que para isso tivesse que aguentar aquele som no último volume. Nem conseguia ouvir a tv ao seu lado!
Naquele horário compensava ficar na cozinha, o único cômodo onde podia ver por uma pequena janela o sol vermelho prestes sumir. Um espetáculo! Momento de permitir soltar a mente, lembrar de poesias, histórias que havia lido no tempo dos sonhos antigos, quando desejou casar, ter filhos, casa decorada e equipada como a que tem hoje. Lembrar deles lhe parecia melhor do que vivê-los. As vezes achava que tinha sonhado tão errado que havia desaprendido a sonhar. Devia ser feliz, conseguiu seu desejo.
Sentiu vontade de chorar essa felicidade. Lágrimas escorreram direto para a massa que girava abaixo de seu rosto, enquanto a massa sonora misturava-se aos seus soluços. Sentiu o coração pulsar tão forte e acelerado que pensou fosse pular para fora e encontrar aquele sol vermelho por inteiro. Fechou os olhos e tudo o que viu foi uma taça do tamanho do mundo, seca.
Respirou fundo, pensou no marido, filhos, futuros filhos de seus filhos e no jantar. Foi abrindo os olhos na velocidade proporcional em que diminuía a velocidade da batedeira... Até desligá-la. Tudo ficou quieto e escuro.
- Um bolo de lágrimas, será que vai encruar?