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domingo, 29 de março de 2015

O dia em que o Falcão Peregrino pediu abrigo em minha casa


Foi em um domingo que o Falcão Peregrino  pediu abrigo em minha casa, mas não qualquer
domingo. O céu estava cinza, fechado com cara de bravo.  Domingo triste e assombrado por dores, raivas e incertezas.

Naquele domingo até o futebol  mudou de horário, o almoço não... Aqui em casa apesar da tristeza no céu e no ar, a mesma rotina,  com todas as movimentações  típicas desse dia. O que acontecia no mundo, lá fora, não queria saber!  Ali estava minha mãe na cozinha, as crianças inventando brincadeiras, as cachorras já de banho tomado, eu na faxina da casa, minha irmã na casa dela com meu cunhado planejando a semana.  Mas, diferente dos outros domingos, a TV de minha sala permanecia desligada.

Na rua tudo igual. O culto na igreja ao lado havia terminado e na calçada estavam as senhoras e senhores com suas roupas de domingo, a bíblia na mão, palavras do pastor na boca e os olhos a controlar a movimentação das crianças na rua.

A única atenção para o mundo além estava no telefone.  Aos céus pedia que a notícia não chegasse... Nunca.  Mas, pela conversa com a médica, ela chegaria a qualquer momento, não passaria do próximo domingo.

Depois do almoço, finalmente tomei coragem e fui ao quarto optar entre duas tarefas: enfrentar uma montanha de roupas que há duas semanas esperavam pelo ferro ou enfrentar aquela janela que me levaria para o mais cinza dos domingos? Minha razão pedia a roupa e meu coração mandava enfrentar a janela. Dei ouvidos ao coração e enfrentei a janela do mais virtual de todos os mundos.
Imagens pipocavam sobre o mesmo assunto, uma onda de amarelo biliar sobressaia  a acentuar a cor cinza daquele dia...  Eram imagens estranhas que me levaram a questionar se nada será como antes, amanhã...  Em minha mente aquelas imagens se misturaram com as de um passado ensanguentado,  bílis negra.  

Perdida nesse caleidoscópio de fatos e história, fui devolvida ao meu quintal pelas vozes agitadas das crianças: “tia, tia, um gavião... Corre!”. Automaticamente o celular veio a minha mão, já que a máquina fotográfica estava distante e poderia perder a chance de fotografar um gavião aqui por perto.

Quando cheguei ao portão lá estava ele, não no ar, mas enrolado em uma toalha nas mãos  de meu cunhado.  

Pássaro tão lindo! Como nunca tinha visto igual, assim, de perto. Olhar assustado, visivelmente machucado e rendido ao destino.  Olhei para aqueles olhos profundos  a dizer-lhe que iríamos ajudar... Como podíamos lhe acalmar? Naquela situação quem se acalmaria?  

“Estava ali, encostado no muro. Vi algo se mexendo e cheguei perto. Ele se assustou e eu também... Ai ficou me olhando com esse olhão e eu olhando ele, até que chamei o Lima pra pegou o passarinho”,  minha mãe contando como encontrou o Falcão Peregrino, que até aquele momento nos parecia ser um gavião. Afinal, não é todo dia que uma ave dessas aparece aqui em casa. 

Enquanto providenciavam um local para deixa-lo protegido,  fui  telefonar para os bombeiros,  que orientaram procurar a Polícia Ambiental. 

Liguei e percebi duvidas no ar. Mais tarde soube que não é comum as pessoas que encontram esses pássaros solicitarem auxilio, geralmente se calam e os mantêm  prisioneiros. A princípio pensaram ser brincadeira, só depois de minha insistência acreditaram. 

Enquanto o resgate não chegava, ficou em uma caixa de papelão coberta por uma toalha, bem quietinho.  Apesar da curiosidade, fizemos um trato de não incomodá-lo e deixar a área silenciosa para que pudesse descansar da fuga e recobrar energia. 

De minha janela, olhava a caixa de papelão e a movimentação ao redor dela; crianças aflitas para levantar a toalha e dar uma espiadinha, água, comida, bolacha, cenoura, tomate, chocolate ... Da janela virtual, nem mais via a onda amarela biliar que crescia em número e ódio, sem proposta, sem ternura, sem afeto por aquilo que diziam defender.  Como a querer cortar as asas de um País que dava seus primeiros voos em liberdade. Daquela janela só buscava identificar quem era o visitante e  nos comentários da sua  foto, que publiquei  no facebook, descobri tratar-se de um Falcão e não Gavião. Será? Com essa possibilidade rastreei e encontrei  imagens muito semelhantes a dele... Sem dúvida era um Falcão Peregrino!!! O  mais veloz de todos os pássaros conhecido, ali, em uma caixa de papelão coberta por uma toalha.

Nada mais triste do que a falta de liberdade e aquela caixa lembrava que muitas prisões não são feitas de grades.  Um Falcão Peregrino, com voo  impedido; um povo oprimido pela injustiça e miséria, cuja plenitude da vida é impedida; uma pessoa presa a uma cama, cujo corpo não mais quer responder a vida, são alguns dos exemplos. 

O telefone tocou e o coração gelou. Do quintal mais dois olhares aflitos em minha direção... Não. Não era a ligação ruim e sim a boa. A Polícia Ambiental  informando que ia demorar  um pouco, pois estavam atendendo outras ocorrências.   

Assim, apesar do trato, não resistimos  e revezamos a visita ao nosso hospede.  Levantar  a ponta da toalha  era como abrir a janela para o mais real dos mundos. Através daqueles olhos solares me acalentei.  Não havia a agitação inicial, parecia mais tranquilo ou resignado, não sei. Apenas me olhava fixamente, sem medo  e desejei o mais lindo dos voos para aquele ser e para o Jr,  o mesmo voo de liberdade que sempre desejei para meu povo.  

Eram 23h39 quando chegaram para resgatar nosso Falcão Peregrino, agora chamado de Falquito. Ainda na caixa os primeiros olhares de quem conhecia o assunto, nos deu o alívio em saber que conseguiu fugir antes da asa ser mutilada. Seria levado ou para o Orquidário ou Parque Anilinas em Cubatão e quem sabe em breve ganharia a liberdade do voo.

Já apegados ao Falquito o vimos sair pelo portão, havia tristeza pela despedida e alegria pela certeza do dever cumprido. Rápida passagem, algumas horas e muitas lições.

Hoje, 29 de março de 2015, quinze dias após aquele domingo, o céu continua cinza e chora. Na
quarta-feira daquela semana, soube que o Falcão estava livre, voando pelos lados da Rio-Santos e pouco antes da meia-noite, meu cunhado, irmão de coração, o Jr, aos 49 anos  se liberou de um corpo cujo fígado adoeceu. Uma hepatite C, levou a um câncer,  deixando sua passagem entre nós bem mais breve do que poderia ter sido. Porém, extremamente amorosa e cheia de dignidade. Vai ver, ele pegou carona nas asas do Falcão e foi tocar o seu baixo em uma festa que o esperava lá no céu.

Daquele domingo, ainda resta a bílis amarela a permear profundamente os sentimentos de uma camada de nosso povo. Que ele se cure!!!   


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